Muito se ouve por aí: Os agentes de trânsito, os “marronzinhos”, os “amarelinhos” devem ter “bom senso”; O correto é advertir, daí se o sujeito cometer a infração novamente, aí sim multar. Mas será que o agente da autoridade de trânsito ou a autoridade de trânsito tem autonomia para se sobrepor as sinalizações regularmente implantadas? Permitir um condutor agir de forma oposta as sinalizações de trânsito e as normas gerais de circulação? É lícito/ legal? Pode o agente da autoridade de trânsito substituir a lavratura do auto de infração para imposição de penalidade (Artigo 256, II, CTB) por uma advertência verbal/ orientação?
Então, vamos lá:
01. Da natureza administrativa da lavratura do AIIP/ AIT (auto de infração para imposição de penalidade/ auto de infração de trânsito).
Vejamos o que dispôs o legislador pátrio na Lei Federal nº 9503, de 23 de Setembro de 1997, o Código de Trânsito Brasileiro em seu artigo 280 caput e a resolução 371 do Conselho Nacional de Trânsito:
Art. 280. Ocorrendo infração prevista na legislação de trânsito, lavrar-se-á auto de infração, do qual constará: […]
Resolução-CONTRAN nº 371: […] A lavratura do auto de infração é um ato vinculado na forma da Lei, não havendo discricionariedade com relação a sua lavratura, conforme dispõe o artigo 280 do CTB. […]
A administração pública possui poderes/ instrumentos (poderes estruturais) que, permitem à administração cumprir suas finalidades, sobrepor-se a vontade da lei à vontade individual, o interesse público ao interesse privado. Trata-se de um poder-dever para que exerça seus atos em prol do interesse público/ interesse da coletividade.
O reportado ato administrativo vinculado exposto na Resolução nº 371, de 10 de dezembro de 2010 do Conselho Nacional de Trânsito é mera exteriorização do poder-dever vinculado da administração pública. No dever-poder vinculado inexiste margem de liberdade a administração pública para discernir o que seria mais oportuno, mais conveniente. O poder vinculado apenas possibilita a administração o exercício do ato vinculado nas estritas hipóteses legais, ou seja, dever de observância ao conteúdo da lei.
Dessarte, fica claro que o agente da autoridade de trânsito (agente público) está subordinado ao império da lei, fruto da preservação do Estado de Direito, cabendo a ele somente a observância/ obediência ao disposto pelo legislador de trânsito no Código de Trânsito Brasileiro, ou seja, ocorrendo infração prevista na legislação de trânsito, lavrar-se-á auto de infração.
Portanto, cabe anotar, que caso o agente aja em desconforme com o estabelecido na lei deixando de observar o seu poder-dever de agir (abuso de poder) está sujeito a sanções administrativas e penais.
02. Da advertência Verbal/ Orientação.
A Lei Federal nº5108/66, o Código Nacional de Trânsito, o legislador previu a possibilidade do agente da autoridade de trânsito diante do ilícito administrativo de trânsito (infração) aplicasse a advertência verbal, em seu artigo 188, I (Decreto-Lei 62127, de 16 de janeiro de 1967).
Art 188. A advertência será aplicada:
I – Verbalmente, pelo agente da autoridade de trânsito, quando, em face das circunstâncias, entender involuntária e sem gravidade infração punível com multa classificada nos grupos 3 e 4;
Era conferido ao agente público uma razoável liberdade de atuação, observando algumas disposições do artigo 189 (grupos 3 e 4), valorando se conveniente ou não (dever-poder discricionário) a aplicação da advertência verbal no lugar da autuação.
O legislador do Código de Trânsito Brasileiro vetou a possibilidade do agente da autoridade de trânsito aplicação da advertência verbal, prevendo somente a possibilidade de aplicação da penalidade de advertência por escrito, competência atribuída a autoridade de trânsito e não ao agente da autoridade de trânsito (artigo 256, I, CTB), disposta no artigo 267, vejamos o que dispõe:
Art. 256. A autoridade de trânsito, na esfera das competências estabelecidas neste Código e dentro de sua circunscrição, deverá aplicar, às infrações nele previstas, as seguintes penalidades:
[…]
I – advertência por escrito;
Art. 267. Poderá ser imposta a penalidade de advertência por escrito à infração de natureza leve ou média, passível de ser punida com multa, não sendo reincidente o infrator, na mesma infração, nos últimos doze meses, quando a autoridade, considerando o prontuário do infrator, entender esta providência como mais educativa.
Trata-se de faculdade/ discricionariedade da autoridade de trânsito, quando, entender tal providência como medida mais educativa. Vale ressaltar, que a advertência por escrito é penalidade assim como a multa. Alguns condutores se iludem com a ideia de não sofrer pontos negativos na carteira nacional de habilitação e da pecúnia/multa.
Ou seja, diante de um ilícito administrativo de trânsito/ infração de trânsito não há o que se falar em advertir verbalmente/ orientar o condutor em vez de lavrar o auto de infração para que a autoridade de trânsito, na esfera das competências estabelecidas pelo CTB e dentro de sua circunscrição, aplique a penalidade cabível ao condutor.
03. A autoridade de Trânsito e o Agente de Trânsito podem se sobrepor as sinalizações regularmente implantadas?
Tal prerrogativa é conferida ao agente da autoridade no Código de Trânsito Brasileiro em seu artigo 89, I:
Art. 89. A sinalização terá a seguinte ordem de prevalência:
I – as ordens do agente de trânsito sobre as normas de circulação e outros sinais;
[…]
O aludido dispositivo parece conferir ao agente da autoridade ampla autonomia para se sobrepor as regras de trânsito quando assim achar pertinente, mas não é bem assim, vejamos:
Toda norma jurídica carece de uma leitura sistemática, e a ciência responsável pelos mecanismos teóricos que serão manejados pelo interprete na busca da compreensão das disposições normativas, que tem por objetivo fornecer conteúdo para a interpretação (usando critérios objetivos) da lei é a ciência denominada como hermenêutica jurídica. Ou seja, a mera interpretação gramatical da norma (de natureza subjetiva) leva o agente da autoridade de trânsito ao erro.
De fato, o artigo 89, I, da Lei, é claro ao atribuir ao agente da autoridade de trânsito autonomia para se sobrepor as demais sinalizações, porém, tal análise deve ser feita de forma cautelosa/ atenciosa sob risco de ferir princípios constitucionais e a finalidade da administração pública (interesse público/ coletivo).
Nas lições de Julyver Modesto de Araújo:
“Apesar de parecer que tal condição confere a este profissional uma ampla autonomia, para, inclusive, se sobrepor aos sinais de trânsito, regularmente implantados, e às normas de circulação constantes do Código de Trânsito, tal análise deve ser feita com cuidado: Somente será lícita a atuação do agente de trânsito, de maneira contrária às regras de trânsito ou aos sinais físicos implantados, quando houver um interesse público a ser preservado, atentando-se sempre aos princípios constitucionais da Administração pública, constantes do artigo 37 da Constituição Federal – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência; assim, somente será exigível de um usuário da via a conduta determinada pelo agente de trânsito, de maneira oposta aos sinais e regras de trânsito, quando as circunstâncias exigirem para o perfeito ordenamento dos fluxos de tráfego e preservação da segurança viária.”
No mesmo diapasão é o escólio de Arnaldo Rizzardo (2013, pág. 210):
“A fim de não haver confronto ou confusão na obediência dos sinais, deve existir uma hierarquia na prevalência. É evidente que as ordens do agente têm preferência ante os sinais ostensivos de trânsito. Nesta previsão, mesmo que existente semáforo, se o policial se interpõe em sua frente e determinada contrariamente à sinalização luminosa, a orientação que estabelece é a que deve ser obedecida. Tal acontece em locais críticos de congestionamentos ou de anormalidades em vias próximas, que ficam obstruídas por algum acidentes. Às vezes, faz-se necessário até contrariar a sinalização, mudando as regras de preferencialidade”.
Percebe-se, portanto, que a doutrina é uniforme, e é indubitável que a aplicabilidade do dispositivo aludido trata-se de exceção, carece que haja uma ameça ao bem jurídico tutelado pelo legislador pátrio no CTB, expresso em seu artigo 1º, §2º e 5º:
Art. 1º O trânsito de qualquer natureza nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação, rege-se por este Código.
§ 2º O trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, a estes cabendo, no âmbito das respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito.
§ 5º Os órgãos e entidades de trânsito pertencentes ao Sistema Nacional de Trânsito darão prioridade em suas ações à defesa da vida, nela incluída a preservação da saúde e do meio-ambiente.
O Professor Leandro Macedo faz o seguinte comentário (2013, pág. 270):
“O trânsito é extremamente dinâmico, não sendo suportado pela sociedade interrupções desnecessárias, devendo, as vias, portanto, estar sempre que possível com uma fluidez desejável, a fim de que possamos cumprir nossos compromissos. Foi com este espírito que o legislador estabeleceu a regra de prevalência de sinais, para que agentes de trânsito, assim como as autoridades com circunscrição sobre a via pudessem melhorar a fluidez do tráfego.”
Professor Gleydson Mendes:
“Saiba que existe uma ordem de prevalência da sinalização para essas situações e em primeiro lugar deve-se observar as ordens dos agentes que irão prevalecer sobre as normas de circulação e outros sinais. Entretanto, o agente somente irá sinalizar de forma contrária às normas quando houver um interesse coletivo, algo relevante diante das circunstâncias que ele presenciar. Por exemplo: ocorreu um acidente próximo ao cruzamento e mesmo com o semáforo vermelho o agente determina que os condutores avancem para garantir a fluidez e a segurança no local.”
04. Conclusão.
Em face do exposto, é perfeitamente claro que os agentes públicos estão estritamente vinculados a lei – Estado Democrático de Direito, subordinados ao império da lei e não mais ao império do homem.
Por fim, verificou-se que a lei a ser cumprida nem sempre é tão clara o suficiente, existindo a necessidade de uma leitura sistemática, a ciência hermenêutica, para compreender a finalidade do dispositivo legal.
Bibliografia:
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27. Ed. São Paulo: Atlas S. A, 2014.
ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 23. Ed: Método, 2015.
NUNES, Rizzato. Introdução ao Estudo do Direito. 13. Ed: Saraiva, 2016.
RIZZARDO, Arnaldo. Comentários ao Código de Trânsito Brasileiro. 9. Ed: RT, 2013.
MACEDO, Leandro. Legislação de Trânsito Descomplicada. 2. Ed: Conceito Editorial, 2009.
http://www.saladetransito.com/2016/08/conheca-sinalizacao-de-transito.html
* Daniel Menezes é Acadêmico de Direito.
Por Mariana Czerwonka/portaldotransito.com